sábado, 25 de outubro de 2008

A TRACINTAGEM


“Vai ser chato”. – Disse alguém na fileira do fundo, e sempre haverá alguém na fileira do fundo.
Não se pode mais hoje em dia perder tempo bordando toalhas ou praticando tracintagem. Eu que, por exemplo, quando uso óculos, durmo sem escovar os dentes já que as lentes de contato me forçam a ir ao banheiro. E disse Hugh Bouix em seu livro “O manifesto do ouro de barro” (Ed. Zafra - página 87):

“Quando fui pela primeira vez aprender a atirar flechas em um alvo, tremi de cima para baixo, não pelo medo, mas pelo peso em carregar a flecha no arco. Tinha 12 anos e me lembro que esse mesmo arco media praticamente a minha altura, e até hoje duvido se não se igualava também em peso (sempre fui muito mirrado, demérito meu e sorte do arco). Eu odiava, arrependi-me profundamente quando preteri críquete e esgrima e optei pela modalidade (Era tolo, assisti há um filme de arqueiros do “Ferroni” e julguei romântica a condição). Desistências não eram aceitas pela instituição, eu deveria cursar durante todo o ano letivo com desempenho acima do satisfatório. Malditos sejam os burocratas.
Gastei o meu ano treinando firme em acertar o tal alvo, e nunca consegui acertar duas vezes consecutivas o centro, sinônimo óbvio de sorte quando o fazia. Chorava copiosamente e quase fora expulso diversas vezes por ofender a mãe e as sucessivas gerações dos meus instrutores; mas embora esbravejasse, permaneci firme, honrando as minhas decisões de homem.
No fim do ano, já me encontrava quase a beira do colapso (Sonhava semanas seguidas com o maldito centro vermelho) quando fui informado que haveria uma competição entre as instituições da costa da leste. Nesse ponto em minha vida, eu tive algumas certezas, uma delas é que o destino é sarcástico e faz de tudo pra curtir uma com a sua cara; fui convocado para os jogos, mesmo sendo terrível.
Caro leitor, nesse ponto os senhores já podem esperar pelo inesperado. O mesmo destino que curtia uma com a minha cara veio para nos brindar com um milagre. Lembrei-me novamente dos filmes do Ferroni quando vi a multidão aguardando a minha primeira tentativa. Nunca na vida me recordo de desejar tanto ter sucesso. Preparei o arco com cuidado e pela primeira vez me senti confiante, dentro de mim já morava a certeza em acertar o centro antes mesmo de acertá-lo. Nós temos sensações assim às vezes não temos? A platéia se calou e eu atirei triunfante… A flecha atingiu a borda do alvo, por muito pouco nem sequer o alvo eu acertei. Subiram gargalhadas de todos os lados e eu fiquei ali desapontado falando entre dentes “esperem só o meu próximo”. Também não acertei o próximo que novamente fora ridículo, e nem o próximo, e nem o próximo. No final da competição eu figurava o ultimo lugar astronomicamente atrás dos outros competidores. Então o leitor se pergunta: Sim, mas e o milagre?
No meu ultimo tiro resolvi tirar o peso de minhas costas, é isso que fazemos quando estamos exaustos de algum jogo. Coloquei em minha cabeça que aquele centro vermelho não era mais o meu objetivo e que aquele tiro seria finalmente, de minha autoria. Às vezes as coisas dão certo quando “largamos a mão” e deu (Lembre-se de que este não é um livro de auto-ajuda e também não estou relatando os sucessos de minha existência). Eu errei completamente o alvo e minha flecha acertara um dos juízes da prova. Encontrei naquele instante minha verdadeira finalidade com o arco, saí atirando flechas na platéia.
Tive sorte de ter sucesso nas outras atividades que me dediquei na vida, pois o arco me rendeu a expulsão da instituição e a minha primeira passagem pela polícia em plenos 12 anos de idade. No dia ainda fui condenado a prestar serviços comunitários depois de mandar o policial enfiar a “moral da história” no cu dele. O sucesso negro.”


Em 1937, “Robert Piccles” inventava a tracinta (o ato de escrever idéias em paredes dentro das casas) enquanto o mundo se agitava. A poesia brotava, graças a ele, em chamas que rodavam ao redor do mundo e voltavam ao destino com filtros dos quatro cantos, eficácia invejável até mesmo para a moderna internet. Sua luta se concentrava justamente contra o “sucesso negro” de Hugh Bouix com o qual tinha agudos atritos. Aliás, para Piccles, os modernos conceitos do sucesso (seja ele branco ou negro) ou fracasso já estavam na época ultrapassados:

“Nossa alma é feita de sucessos e fracassos em sua natureza, não é possível desvinculá-las. Onde se concentra então nossas medidas de valor? Na nossa biografia? Nos nossos atos quotidianos ou projetos? Não se pode confundir o sucesso com a fama ou reconhecimento e nem o fracasso com derrota. Somos sim, alma. De peito aberto e sangrando. Somos o extremo sucesso e o extremo fracasso do agora, no tempo que nós é real, e só assim somos verdadeiramente completos”
[Esta é uma das tracintas de Piccles que correu as paredes do mundo]

De grave fato bonito a tracinta voou (sem ^ de acordo com as novas regras ortográficas) longe. E mesmo aqueles que estavam praticamente sem vinculo com a informação riscavam nas paredes suas idéias. Escreviam com o que se tinha à disposição, há tracintas escritas desde carvão à fios de ouro. Loucos. Pediam o dobro, o triplo do valor do imóvel informando ao comprador que as paredes da casa estavam cobertas por idéias. Pessoas até, que ao se mudar, não conseguiam se desvencilhar emocionalmente e levavam consigo as paredes para a nova casa. Não consegui descobrir em minha pesquisa se pagavam pela casa as quantias adicionais pedidas, mas é fato que a idéia era cercada de bom humor. Até os mais românticos diziam ser sinal de boa sorte, viver em uma casa de idéias.
É fato também que casas que recebiam viajantes trazendo a tracintagem de paredes de outros lugares do mundo enobreciam as casas (pratica que se popularizou agudamente). E as mesmas se tornavam invejadas na vizinhança, pois quem possuía mais o conhecimento em sua casa gozava de mais “enobreza”. Em eventos sociais, como festas e jantares, era comum convidar amigos para propor debates e discussões sobre as idéias nas paredes (mais um sinal da importância em ter uma boa coleção).
A pratica sobrevive ainda hoje, muito mais timidamente é fato ou até transformada (como em banheiros publicos, mesmo que seus dizeres, por muitas vezes interessantes, fiquem longe dos fios de ouro do passado e figurem entre mensagens pornográficas). A tracintagem mostra que um outro tipo de riqueza é o que se buscava, e este foi um dos primeiros passos “Tecnológicos” (se é que podemos chamar assim) para a troca de ideais filosóficos entre vizinhos e nações, nessa “pichação interna”.
Em relatos, Piccles se dizia concordar com somente um ponto de Bouix: “Gostei quando ele mandou enfiarem a moral no cu. Temos que realmente implodir tudo, quem sabe até as paredes”

As Duas Regras Básicas da Tracintagem:

• NA ESCRITA, OBEDEÇA A SUA NATUREZA.
• PARA PASSAR UMA TRACINTA, É NECESSÁRIO PRIMEIRAMENTE TÊ-LA ESCRITA EM SUA CASA.

*Vou pesquisar mais sobre o tema e "posto" mais coisas.

Leandro D’Errico